O acordo ortográfico e o peido-mestre

12.12.04_Mouzar Benedito_O acordo ortográfico e o peido-mestrePor Mouzar Benedito.

Nos tempos anteriores ao euro, quando o dinheiro de Portugal ainda era o escudo, eu estava na cidade do Porto num início de janeiro, um dia frio, e resolvi comprar meias de lã, porque mesmo com botina ferrada meus pés estavam gelados. E me lembrei: meia, em Portugal é peúga.

Fui a uma loja, vi umas meias na vitrine e me interessei por uma que custava duzentos escudos o par. Pedi ao vendedor, ele me perguntou se eu queria peúgas de lã, eu confirmei e ele me mostrou escrito pequenininho que aquelas tinham só 50% de lã. Mostrou outra de lã pura e disse:

― Estas custam cem escudos o par. Então, com o dinheiro que gastaria com um par misto dá para comprar dois pares de pura lã ― aconteceu outras vezes de comerciantes de lá terem esse comportamento completamente diferente dos daqui, que tentam te empurrar as coisas mais caras.

Comprei, sorrindo. E se eu fosse comprar também um cachecol teria que pedir um cachenê. Mas não estava engóvio, quer dizer, morto de frio.

Por que me lembro disso agora? É que remexendo nos meus livros que ficam “escondidos” numa estante, atrás de outros, achei o Dicionário Contrastivo Luso-Brasileiro, de Mauro Villar, que nem lembrava que tinha. Segundo o autor, ele resolveu fazer esse dicionário em 1977, quando foi morar em Lisboa. Ele pediu à empregada portuguesa que deixasse uns legumes na pia e ela os colocou em cima da tampa do vaso sanitário.

São manjadas algumas palavras que têm sentido completamente diferente no português de Portugal em relação ao do Brasil. Basta lembrar que menino lá é puto, cafezinho é bica, fila é bicha e dar descarga é carregar no autoclismo.

Bom, o malfadado acordo ortográfico que veio para “unificar” a língua portuguesa nos países lusófonos unifica mesmo? Antes de entrar no assunto, lembro que foi um meio de jogar muito dinheiro fora, beneficiando, por exemplo, editoras de dicionários. Quantos milhões de dicionários perderam o sentido com esse acordo que entre outras barbaridades acabou com o trema?

E não é só isso. Pedagogos dizem que a existência de livros com grafia “antiga” nas bibliotecas escolares confunde os estudantes. Ele aprende a escrever de um jeito e os livros mostram de outro. Então, todos aqueles livros viram papel velho. Tem que repor tudo!

Com tanta falta de bibliotecas no Brasil, nos damos esse luxo. Quer dizer, nos damos, não. Os burocratas da língua deram. E o governo Lula não barrou essa trolha.

Bom, agora vamos lá, misturar um pouco das nossas palavras e expressões com as que os portugueses usam. Usando um verbo brasileiro, traçar, que tem vários sentidos, conto que num único pôr-do-sol, tracei duas Angélicas. Acha que é contar papo? Pôr-do-sol lá é coquetel e Angélica é uma bebida feita com mosto, bagaceira e açúcar. Foi o início de uma berzundela, quer dizer, bebedeira.

E vou contar uma coisinha, usando algumas das nossas palavras intercaladas com ouras usadas por portugueses: fui a um estaminé, onde, numa cavaqueira com um abébia enquanto tomava pomada e água com picos, ele me disse que gostaria de ir a Glásgua e a Lípsia. Parti para a boa-vai-ela e disse que ele não ia porque era um forreta.

Traduzindo: fui a uma venda onde, num bate-papo com um sujeito enquanto tomava vinho bom e água mineral com gás, ele me disse que gostaria de ir a Glasgow e a Leipzig. Parti para a galhofa e disse que ele não ia porque era um pão-duro.

E essa outra? Veja: um imporém marialva e chalupa, metido a engatatão e ceboleiro, viu uma pêssega de belas catarinas e bimbas e mandou um gandaio, convidou-a para ir atrás de uma machoqueira. Ela teve um vagagaio, ele disse que era ninice. Foi um pesqueiro. Ela deu uma pera no aldrabão e chamou sua malta, que deu uma tareia no pandilha galifão.

Entendeu?

É simples: um magricela machista e pinel, metido a paquerador e bolinador, viu uma mulher boazuda, de belos seios e nádegas e deu-lhe uma cantada, convidou-a parar atrás de uma moita. Ela teve um chilique, ele disse que era frescura. Foi uma confusão. Ela deu um murro no canalha e chamou sua turma, que deu uma surra no sem-vergonha mau-elemento.

Bom, chega de historinhas, mas vamos lembrar mais algumas expressões portuguesas. Treco-lareco é conversa fiada; giraldinha é farra; moita-carrasco é bico calado; Pôr-se a fancos é ficar atento; trunfa é cabeleira, cabelo despenteado; marosca é trapaça e marreco é velho caduco. Almeida é empregado da limpeza pública, gari; fazer um manguito é dar uma banana, e uma cegada de morte é uma baita confusão.

Ah, e se alguém perguntar se você quer um martírio ou um dióspero, não se irrite. Martírio é maracujá e dióspero é caqui.

A coisa vai longe. Vamos parar por aqui, avisando que se lhe contarem que alguém deu o peido-mestre, não significa que ele seja um pindérico, quer dizer, nojento. Peido-mestre é a morte, e dar o peido-mestre é morrer.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

13 comentários em O acordo ortográfico e o peido-mestre

  1. Interessante reflexão. Parabéns!

    Curtir

  2. joseh brito // 04/12/2012 às 6:35 pm // Responder

    Que riqueza, quase acabada se a reforma tivesse “emplacado”.

    Curtir

  3. Não é abébia, é abécula, que quer dizer um tipo meio imbecil. Dar uma abébia (ou não) é dar atenção, uma oportunidade. Pindérico não é nojento, é pobretana, miserável, alguém que não tem onde cair morto. Dióspero é dióspiro.
    Engóvio não existe, e cachené e uma francezisse. Cachecol é cachecol e maracujá é maracujá em ambos os lados do oceano.
    O texto está engraçado, gostei de ler, mas os exemplos deixam muito a desejar, talvez por estarem totalmente desactualizados ou serem demasiado regionais. Fale a sua língua que nós falamos a nossa, use o trema à vontade, que nós não nos importamos. Quanto ao AO estamos de acordo!! Os seus apologistas não passam de uma cambada de azeiteiros – termo típico do Porto que quer dizer pessoa nojenta, sem nível.

    Curtido por 1 pessoa

  4. Como sempre, muito bom viu Mouzar – dei boas rizadas com essas confusões lusófonas…abs Paulinho

    Curtir

  5. Boa, Mouzar. E os lingüistas (com trema) se venderam por um punhado de notas, pá. Ora pois, e o trema é, além de tudo, um charme estético, uma plasticidade agradável. Acabar com ele é matar ainda mais a escrita.
    Pela preservação do trema já !

    Curtido por 1 pessoa

  6. Teca La Macchia // 05/12/2012 às 9:16 pm // Responder

    Mouzar, meu querido… não vou usar a nova ortografia nem a pau, Juvenal!!!! Quero ver qeum me obrigue! Jamais deixarei de usar trema, acentos agudos e tudo o que aprendi nesses meus sessenta anos para escrever escorreitamente. Por que não nos unimos e peitamos esse acordo? Há de haver um jeito de barrar essa escrescência! Quanto ao artigo, como sempre, adorei, apesar dos reparos da Maria…

    Curtido por 1 pessoa

  7. José Marcel Lança Coimbra // 26/01/2013 às 3:03 pm // Responder

    Mas será o Benedito! Vc está certíssimo, Mouzar, sobre essa porcaria de reforma que querem nos enfiar goela abaixo!! Pura perda de tempo e dinheiro para a maioria da população. Para alguns espertos,, uma grande fonte de lucro. Meta o pau nessa reforma!

    Curtido por 1 pessoa

  8. Como já alguém disse antes aqui … o texto está engraçado mas completamente despropositado. Inclusivamente com palavras e expressões que nem nós portugueses conhecemos. Acho que há aí qualquer coisa de demasiado inventivo. Surreal … Esse AO só continuará a existir na cabeça dessas “abéculas” que o inventaram … verdadeiros carrascos da nobre língua portuguesa … mais conhecidos por FDP …

    Curtir

  9. A.Meireles Graça // 26/03/2013 às 12:42 am // Responder

    Amigo Mouzar, gostei do seu artigo. Maria tem razão e seu dicionário regista formas de calão lisboeta. Meia e peúga são a mesma coisa; na diferença de a meia ser comprida, para mulher, e a peúga curta, para homem. Dióspiro é um fruto da familia do caqui, mas diferente: o caqui pode comer-se rijo e tal como a maçã; o diospiro só mesmo muito maduro e à colher; a este tb chamamos por cá cáqui ou dióspiro maçã. Por cá temos rapaz e rapariga, esta a filha virgem de qualquer pai quando, por essas bandas é havida por mal comportada e trocada por moça, termo que tb usamos na mesma acepção. Mas tudo bem: gosto mesmo de ler autores brasileiros e tenho dicionários para esclarecer as minhas dúvidas; para mim são regionalismos, palavras tão nossas como as do Minho ou do Algarve. Venha daí o vosso Catulo e as trovas do Ceará, venham os serestreiros; levai-me Camões, Bocage e Pessoa… mas sem Acordo nenhum, sem imposição nem vigarice, sempre livres neste grande espaço que continuamos a construir no orgulho de uma História comum: e não venham as bestas ensinar-nos a falar ou a escrever!

    Curtir

  10. Gosto muito do que o mouzar escreve e tenho horror a essa reforma ortográfica.

    Curtir

Deixe um comentário