As duas cidades

Por Urariano Mota.

É vergonhosa a naturalidade com que se publicou  uma reportagem sobre o Recife dos ricos, no Diário de Pernambuco do último domingo. É um texto com ar de saudade, de como era bom o mundo, nas fotos e depoimentos sobre a cidade dos anos 50 a 80. Antes de continuar estas linhas, entendam, por favor. Os burgueses têm o seu ambiente, é justo, válido e inserido no contexto que deles se fale, mas não se pense disso retirar qualquer poesia, a não ser, claro, uma poética de destruição. Queremos dizer, em termos mais chãos: a reportagem, por falta de contraste, por ausência de um ponto  de vista do povo nas suas evocações, de vazio de linha crítica, insinua que a memória dos grã-finos dá a identidade do Recife.

Em português de etiqueta, que pensam ser o português educado, digo: os que vivemos no Recife desde 1950, nessa proustianice não estamos. Na reportagem ocorre uma diferença radical de classes, mas com a mesma isenção de um classificado de venda de escravos, no Recife do século XIX. Com o acréscimo de um impune saudosismo, para o  glamour dos “anos dourados” do Recife.    

Mas chega de adjetivação, passemos à prova testemunhal desse caráter da cidade. Copio trechos da reportagem, publicada em papel e online.   Os negritos em destaque são meus.

“‘Na década de 1950 as pessoas estavam sempre de roupa social, o que diferenciava o dia da noite era a cor e o tipo do tecido’, lembra Bruno Perrelli. A alfaiataria da família começou com o pai, Antônio, em 1921. Ele recorda que todos queriam usar o linho importado Taylor durante o dia. ‘Quanto mais caro o linho, mais maleável. A gente dizia que quem determinava a qualidade da roupa era o vento: se o tecido balançasse era bom’. O alfaiate acredita que o tecido caiu em desuso ao longo das décadas seguintes por conta da infraestrutura necessária para a manutenção das peças. ‘Se vestir bem não era nada prático, era preciso ter passadeira, engomadeira, toda uma série de serviços que iam de encontro à vida que começava a ser construída nas cidades’, completa…

Nos anos 1970 a praia continuou em alta, mas a moda era velejar. A cerimonialista Rose Paes Barreto, 64, era adolescente na época e frequentava com a família o Cabanga Iate Clube. ‘Todo mundo tinha ao menos um veleiro Optimist’. Nos fins de semana, o dia começava na piscina e terminava no bar, entre uma partida de tênis e outra. ‘Você sabia quem era todo mundo que estava no restaurante, todos se conheciam, bem diferente de hoje’, lamenta Rose. ‘Mais adiante, o perfil dos sócios mudou. O clube focou quase que exclusivamente os esportes náuticos’….

Os anos 1950 e os anos 1960 prepararam os ânimos para a década seguinte: 1970 foi a verdadeira belle époque do Recife’. Insuflado pela ideia do milagre econômico, apesar da intolerância da ditadura, o país vivia um período de esperança de desenvolvimento com a abertura do país ao investimento estrangeiro…

A casa da tradicional família pernambucana costumava ter um enorme jardim, onde aconteciam as recepções. E os motivos para a reunir os amigos não precisavam ser muito elaborados. ‘Até a década de 1980 as mulheres convocavam os amigos para um cafezinho quando chegavam de viagem, quando compravam um novo jogo de talher ou uma faca elétrica’, conta Demazinho Gomes. Ele revela que existia uma competição velada entre as matriarcas: ‘Todas queriam servir o melhor café da cidade’. As cozinheiras, que deveriam ser exímias quituteiras, eram as mais disputadas. Mas não ousavam trocar de patroa, fidelidade era característica essencial de um empregado doméstico.

‘Não existia essa história de buffet ou casa de festas. As mulheres faziam as festas nas residências, e a comida e a organização vinha da área de serviço’, conta Rose Paes Barreto. Para as festas que exigiam um toque ainda mais refinado, ninguém hesitava em chamar Bandeira, o mordomo do Palácio do Campo das Princesas. Ele era uma espécie de trunfo para as ocasiões de extrema formalidade. ‘Bandeira dava direcionamentos aos outros criados e se valia de sua experiência no palácio para aplicar as regras oficiais de etiqueta nos eventos’, diz Demazinho…”.

A biografia do Recife, o caráter de exclusão da cidade é bem outro. Para esse mundo de glamour, narro da viva experiência em meu próximo livro O filho renegado de Deus.  O negro em destaque é do romance.  

“Antes daquela manhã de 1958, na altura do fim da segunda guerra, Filadelfo se tornara querido entre os marinheiros norte-americanos que desciam ao Ship Chandler Bar, no Porto do Recife. E na condição de amigo, ou de conhecido, ou de apenas um guia útil,  conduziu certa vez um oficial da Marinha made in USA ao que de melhor havia no Recife. Filadelfo então não sabia, e até a sua última hora jamais soube, que a cidade era dividida em classes, que as pessoas de cor escura traziam na pele a marca de escravos, nem muito menos podia adivinhar que as belezas da cidade não eram belezas universais, desfrutáveis por todo e qualquer habitante. ‘O sol brilha para todos’, ele dizia em inglês. E por nada saber, e por ver o mundo como imaginava que o mundo o via, aquela relação entre o homem universal e os objetos universais, Filadelfo levou o seu igual para o melhor restaurante da cidade, o mais famoso naqueles anos, o Restaurante Leite. Se houvesse sobrevivido àquele século, e por alguma estranha química do tempo ganhasse outra consciência, teria dito em 2013: ‘Ah, o Leite era branco até no nome’.  Mas ele era o guia, não? Vale dizer, ele, em vez de escudo, estava escudado pelo  mariner, ‘um sujeito muito decente, fino, me deu vários presentes’. No entanto, para quê Filadelfo ousou? Sentado à mesa muito à vontade, estava na sua cidade, não?, muito rico, pagaria em dólar, ok?, em vez de pedir o menu, perguntou ao garçom:

– O que vocês têm aqui pra comer?          

Ao que lhe respondeu, empertigado, limpo e branco o superior vestido de criado de mesa:

– O cavalheiro aqui – disse, apontando para o gringo – eu atendo. Mas você, não.

– Por quê? É preciso estar de paletó? Eu estou igual a meu amigo aqui.

– De ordem da gerência, o restaurante só serve a pessoas educadas.

– Como assim? Como é que o senhor sabe que eu não sou educado? Eu falo inglês e francês muito bem.

– Você entenda… não é por mim. Nada contra a sua pessoa. Mas atender você, não.

Então Filadelfo começou a se exaltar, e a explicar ao oficial o que estava ocorrendo. E o garçom firme, alto e inamovível:

–  Você, não.

– Que absurdo!

Então o criado, aquele que absorve o espírito da casa, foi ao ponto:

– Saia, por favor. O gerente diz que negro é fora no Leite.

 O quê?! Como é?

– Eu até deixei você entrar… saia. O seu amigo nós atendemos.

– Eu sou escuro, mas sou direito. Não sou qualquer um!

– Não vou perder o emprego por sua causa. Saia.

Ao que, no tumulto formado, vem o português, o dono do Leite.

– O que há por aqui?

– Senhor, eu estou explicando a esse… – e apontava para Filadelfo – a ele que não posso atendê-lo. Mas ele não quer entender.

– Não tem mais o que explicar, respondeu o calvo, grosso e rico dono. E pegou no braço de Filadelfo: – Você retire-se. A minha casa tem um nome. Saia! Fora, ou eu chamo a polícia.”

Nos anos dourados dos burgueses e na memória do Recife vão duas cidades. Como observou a minha mulher, ao ler o jornal do último domingo:  “nós vivíamos em um mundo que não chegava nem na calçada dessa elite”.  São duas cidades. 

***

O livro de Urariano Mota publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (ebook), agora com novo preço: R$10. Para comprar, clique aqui ou aqui.

***

Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.

6 comentários em As duas cidades

  1. Ramos Sobrinho // 14/08/2012 às 5:54 pm // Responder

    Aguardo com vivo interesse a publicação de “O filho renegado de Deus”. Essa gente racista pouco ou nada mudou, talvez só uma bomba atômica possa fazer alguma coisa se mexer – transitar, diria Paulo Freire – em suas consciências subservientes e retrógradas. Os Filadelfos de hoje continuam observados e tratados mais ou menos do mesmo modo, caçados nos canaviais por capangas semelhantes – hoje montados em motos -, trabalhando catorze horas por dia no comércio: escravos de carteira assinada. Enquanto netos de senhores feudais são executivos de multinacionais, com normas a cumprir, horários, obediência, tudo como manda o capital predatório de lá e de cá.

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  2. José Amaro Santos da Silva. // 14/08/2012 às 10:02 pm // Responder

    Na história das mentalidades está escrito que, para remover preconceitos será necessário, talvez, séculos, ou mais que isso. A matéria em questão, que se refere aquela que foi publicada nas páginas da revista Aurora do DP, retrata uma época, que para muitos, ainda é presente em suas mentes. Como um dos Filadelfos, sofremos dos mesmos preconceitos, através de achincalhes, certamente diferente daquele tratamento dado ao guia Filadelfo, posto à rua pelo braço como fez o portuga do Restaurante Leite.Na década de 70, quando fomos prof. de educação musical no Ginásio Nossa Senhora da Conceição, na Madalena, que pertencia ao Sindicato dos Bancários, que mesmo sendo de um sindicato, onde estudaria, talvez, filhos de proletários, pelo contrário, eram os filhos de alta burguesia que ali frequentava.Certa feita, quando nos encontrávamos anotando no quadro uma pauta musical, surge, entre os alunos um comentário: engraçado, esse professor parece o cozinheiro lá de casa, só falta o “chapéu”…
    É isso!

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  3. waltereudes // 15/08/2012 às 6:37 pm // Responder

    Lá se vai mais um pouco do “doce sabor” de uma Recife descente… quando à interpretações parciais se põe filtro verídico crítico de uma ótica plural, sobra-nos certa lamúria bem-vinda ao fato revelado. É sempre sofrível a quem tem apego ao Recife (mas em qualquer lugar pode se repetir esse cenário típico de Brasil / de mudo que foi um dia colonizado)
    tomarmos pé da realidade oculta nesses “doces momentos” d’outrora. Mas também não nos é notícia nova, observação inaugural dos “dois mundos(ao menos)” e “uma só versão” – lembre-se de Josué de Castro jovem, recém formado em medicina e durando pouco tempo em emprego de médico clínico da industria têxtil Recifense – “é só alimentar melhor os operários que essa doença tem fim” – não exatamente com essas palavras, mas com esse sentido, receitava Josué aos industriais, melhores condições de vida para os operários que sofriam de tuberculose. Lá se vai os anos 30/40 do século XX!! Se a denúncia desses “mundos paralelos” coexistindo nos move à indignação e reflexão, principalmente quando a “história dos vencedores” é alardada com nostalgia e glamour, lidemos com essas “inquietações” sempre com acolhida recepta no que há de muito a se desmistificar… mas vai ainda existir numa certa “áurea” recifense, pernambucana e brasileira, certo lastro potentíssimo de mútua-influência inter-continetal/ inter-racial no forjar de nova forma tropical (em seus bônus e ônus – muitos ainda por se rever talvez!), a brasilidade.

    Walter Eudes
    Comunicador
    Pernambuco/BR

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  4. No Luis Nassif Online, onde o texto foi republicado, um leitor me perguntou se o relato do Leite era ficção ou se teria acontecido mesmo. A ele respondi e copio aqui:

    O relato do personagem no Leite é ficção. Mas como tudo que escrevo, é recriação do que sei e vivi. Quero dizer, o fato aconteceu com uma pessoa que fez e faz parte da minha biografia.

    O Leite continua o melhor restaurante do Recife. O diabo é que, como todo esplendor de Pernambuco, dos doces ao frevo, tem uma história de exclusão e violência. No Leite, realmente, negros não entravam até o fim dos anos 50, pelo menos.

    Parodiando Bernard Shaw, quando escrevo sigo o pensamento: “a minha forma preferida de mentir é dizer a verdade”.

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  5. Eu adorei a reportagem. Senti uma ironia fina ali, zombando daquela cafonice e provincianismo.

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  6. Quem viveu, viu assim mesmo.!!! Obrigada por lembrar a todos, novos e velhos, o que ainda existe encapado por uma sociedade puritana e intolerante que se diz cristã…Concordo com a ironia fina em relação à cafonice e provincianismo atualizadas diariamente nos suplementos sociais, nos programas exibicionistas das riquezas e das misérias extremas, de um sociedade dividida pelo exclusão e pelo preconceito.

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