O que pode fazer uma (um) psicanalista em uma coluna de jornal?

Por Maria Rita Kehl.

Trecho de introdução a 18 crônicas e mais algumas (título provisório), a ser lançada pela Boitempo no segundo semestre de 2011.

 O que pode fazer uma (um) psicanalista em uma coluna de jornal? Parece óbvio que sua primeira missão seja a de divulgar a psicanálise entre leigos. Mas, cuidado. Mesmo quando praticado com honestidade, o proselitismo tem limites. Na melhor das hipóteses, fica chato e previsível. Na pior, transforma-se em propaganda – à qual, invariavelmente, o epíteto “enganosa” assenta melhor que uma luva.

Caberia então ao analista explicar ao leitor de jornal, com base na teoria freudiana, certos fenômenos e “comportamentos” que intrigam a sociedade? OK; mas com muita, muita cautela. Já se usou e abusou do “Freud explica”, uma prática que tende antes a naturalizar nossa percepção do sofrimento social e nos conformar com suas causas, do que a produzir questionamentos e tocar na raiz do mal estar – efeitos que, estes sim, poderíamos chamar de analíticos.

A psicanálise, a rigor, não é aplicável a situações fora da relação de transferência que a clínica propicia. Há quem diga que o próprio inconsciente seja um fenômeno de laboratório, que só existe na presença do analista, se a transferência se estabelecer. Um purismo de tal monta deixa de levar em consideração a chamada “psicologia das massas”, mas deixemos para lá, por enquanto. A psicanálise não é uma teoria aplicada à clínica e/ou aplicável para explicar todas as bizarrices de que o humano é capaz. Antes de mais nada, a psicanálise (assim como seu irmão gêmeo em importância, no século XX, o materialismo histórico) não é uma teoria aplicável, é um método investigativo – que parte, evidentemente e assim como o dispositivo marxista, de hipóteses teóricas razoavelmente bem fundamentadas.

O melhor que um psicanalista pode fazer, na imprensa, é quase idêntico ao melhor que pode fazer um jornalista bem vocacionado: investigar. A diferença está no instrumental de que cada um dispõe, e não no destino do texto. Investigar a história (marxismo), os “fatos” (jornalismo), as motivações e/ou as conseqüências silenciadas de um fato (psicanálise).  Mas só agora, seis meses depois de ter perdido minha coluna quinzenal num grande jornal paulista por não ter cumprido o combinado de ocupar o espaço de que dispunha no papel de psicanalista, consigo formular com clareza isto que, desde sempre, foi para mim uma convicção.  A escrita do psicanalista é sempre clínica – mas não sua aplicação.  O que distingue o lugar do psicanalista na imprensa não é o número de vezes em que ele se refere a Freud, a Lacan ou ao complexo de Édipo, não é a escolha de pautas relacionadas á vida íntima, aos problemas amorosos ou familiares. O que poderia distinguir o psicanalista que escreve em jornais, e que acima de tudo – que isto não seja esquecido – é também um cidadão, é o modo como sua experiência clínica pode ajudá-lo não a explicar, mas a escutar o sintoma social. É a abertura para as manifestações do inconsciente, e não a explicação teórica, que faz com que um texto seja psicanalítico – não “ao invés de” jornalístico, e sim “além de”.

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Maria Rita Kehl é psicanalista, doutora em psicanálise pela PUC de São Paulo, poeta e ensaísta. É autora de vários livros, entre os quais se destacam Videologias – Ensaios sobre televisão (Boitempo, 2004), escrito em parceria com Eugênio Bucci, e O tempo e o cão (Boitempo, 2009), ganhador do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Não-Ficção 2010. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, sempre na primeira segunda-feira do mês.

1 comentário em O que pode fazer uma (um) psicanalista em uma coluna de jornal?

  1. Seria possível saber o email da psicanlista Maria Rita Kehl para convidá-la para uma palestra sobre a questão das drogas na escola em que dou aula, Instituto federal de educação, ciência e tecnologia de são paulo (rua pedro vicente, 625 – canindé)?

    Será em outubro na semana de educação, ciência e tecnologia no período de 17 a 22 de outubro.

    Aguardo resposta.

    LAERTE MOREIA DOS SANTOS – professor de filosofia

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